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Submitted by NUNO.CARVALHO@EDP.PT on
Lima Carvalho (Porto, 1940) entrevistado por Filipa Lowndes Vicente no maat a 10 de junho de 2022*, dia da realização do mural "48 artistas, 48 anos de liberdade"
Lima Carvalho - Joana Linda 2022

A participação no mural do maat, 10 de junho de 2022

Soube na semana passada que o maat estava a organizar um painel de pintura coletiva no dia 10 de junho deste ano, 2022, como homenagem ao painel feito no dia 10 de junho de 1974. E que tinham tentado convidar todos aqueles que tinham participado há 48 anos.  Eu estava muito descansado, estava a fazer gravura, e a minha mulher telefonou-me: “Olha, vem aí no Expresso uma coisa sobre o painel em que tu entraste; aparecem lá umas fotografias, feitas agora, do grupo de 48 artistas que vai fazer o novo painel, mas tu não estás lá. É uma fotografia em que aparece o Manuel Botelho, a Emília Nadal…” Eu liguei à Emília: “Então, o que é que se passa? Eu entrei no painel de 1974, eu pertencia à comissão central do movimento democrático de artistas. Mas não me convidaram para esta conversa.” Não tinham conseguido o meu número. Mas a Emília fez o contacto e aqui estou. 
 

O painel do 10 de Junho de 1974

Éramos novos na altura. Senão já estávamos mortos. Os muito velhos não foram. Sabe porquê? Nós convidámo-los e eles não quiseram. Perguntaram: “Tem andaimes?” “Tem.” “Então não vamos.” Eles já tinham muita idade. O Hogan, o Dourdil, o Abel Manta, nem pensar. Nós dissemos: “Estão muito seguros.” “Não me interessa” E não foram. Os andaimes eram de três andares com uma escada larga entre eles, com um corrimão. Eram quadrados de 1,5 metros. A mim calhou-me um quadrado no andaime de cima. Foi mau e foi bom. Foi bom, sabe porquê? Porque não tinha o público sobre mim. Estava uma multidão… E lá em cima era um calor, estava um dia muito quente. E ainda havia projetores. Eu tinha um projetor ao meu lado. 
Estava marcado para as três da tarde, mas, quando chegámos ao local onde a tela estava montada, já lá estava uma multidão difícil de romper. Já era difícil chegar aos próprios andaimes. O painel tinha 48 quadrados iguais que foram sorteados entre os 48 artistas. E esses 48 simbolizavam os 48 anos de fascismo. Não houve discussões. Foi aceite por todos nós. Por vezes havia até ligação nas pinturas que estavam lado a lado.
Na parte que pintei, escrevi “Joana” e “João”, os nomes dos meus filhos que tinham cinco e seis anos. Outros escreveram slogans políticos. O Pomar, por exemplo, que andava embeiçado com a Graça Lobo, fez uma foice e um martelo cruzado com as letras da palavra “Graça” – o símbolo do partido e o nome de mulher a misturarem-se. 

Fomos visitados por individualidades – políticos, pessoas do MFA [Movimento das Forças Armadas] a quem por vezes nós oferecíamos os pincéis com tinta para que eles participassem nas nossas pinturas. Havia uma comunhão enorme entre nós e quem nos estava a assistir ou a visitar. Não havia contestação nenhuma. Todos nós partilhávamos pincéis e cores. Havia um laço entre nós. Não houve repintes. Nasceu e acabou naquela tarde. 

O 25 de Abril 1974
 

O 25 de Abril foi de repente. Não estávamos a contar. Apesar de ter acontecido o 16 de Março, em que um pelotão de militares saiu das Caldas da Rainha, mas abortou antes de chegar a Lisboa, e alguns comandantes foram presos. Soubemos mais tarde que o Otelo disse aos colegas que foram presos para não se preocuparem porque não ficariam muito tempo na prisão.

Quando se dá o 25 de Abril, a arte, a pintura, a cultura, em Lisboa e no Porto, estava em pleno. Havia uma grande movimentação artística. Alguns pintores tinham lista de espera de encomendas das suas obras. Eu próprio, à data do 25 de Abril, tinha uma exposição na Galeria Ottolini, na Rua António Augusto Aguiar, onde é agora a Padaria Portuguesa, ao pé do El Corte Inglês, no lugar onde se chegou a pensar fazer a Catedral de Lisboa. A arte, neste período, estava em ebulição. As pessoas estavam a ganhar dinheiro facilmente com compra e venda de ações. Mas o 25 de Abril veio mudar tudo. 

O ACRE com a Clara Menéres e o Alfredo Queiroz Ribeiro

Com o 25 de Abril deixámos a pintura, a pintura de ateliê. Fomos para a rua, porque tudo se passava na rua. A atividade artística não podia continuar nos ateliês. Os acontecimentos estavam na rua. O momento era único. Nesse verão resolvemos agir. Criámos um grupo – o ACRE –, a Clara Menéres, o Alfredo Queiroz Ribeiro e eu. Fizemos intervenções públicas em 74 e 75. Uma das ações foi na Torre dos Clérigos, em plena cidade do Porto. A intervenção não foi fácil. Mas nunca fazíamos nada sozinhos. Havia sempre colaboradores espontâneos. Para pendurar a fita amarela na Torre dos Clérigos e para pintar a rua do Carmo às bolinhas, em Lisboa, tivemos sempre gente e amigos a colaborar. 

Depois disto fizemos várias ações. Fizemos uma repartição pública em que eram entregues diplomas de artistas a quem quisesse – as pessoas pagavam 20 escudos por cada diploma. Em Lisboa, fizemos uma repartição pública numa livraria da Rua da Trindade. No Porto, foi numa galeria da Avenida da Boavista, a Galeria 2. Outra iniciativa que levámos a cabo nesta altura foi nas Caldas da Rainha, na fachada de um prédio. Mandámos fazer uma placa de mármore a dizer: “Aqui nasceu El-Rei D. Sebastião I”. Perguntei num café a quem pertencia aquele prédio e disseram-me que era de um advogado local. Fui ter com ele e expliquei-lhe a nossa ideia – já tínhamos o mármore para fazer a placa, disse-lhe que éramos um grupo artístico e que queríamos fazer uma intervenção simbólica. Ele pensou, pensou e aceitou. O que não deixa ser extraordinário. Gostava de me lembrar do nome dele. Colocámos a placa ao anoitecer, num dia de verão. No dia seguinte fui lá vê-la e estava lá um grupo de pessoas a comentar: “Eu não sabia que o D. Sebastião tinha nascido aqui!” 

Em 75, num acidente de automóvel, morre o nosso companheiro Queiroz Ribeiro. A Clara Menéres era supersticiosa e pensou em não continuar com o grupo, mas mudou de ideias e ainda fizemos umas intervenções. 

As reuniões do Movimento Democrático de Artistas Plásticos

Eu fazia parte do Movimento Democrático de Artistas Plásticos. Nós reuníamo-nos em vários sítios. Na galeria Tempo, por exemplo, que era uma galeria perto da Sociedade de Belas-Artes. Estivemos muito tempo na Sociedade de Belas-Artes, mas antes ou depois, já não me lembro bem, fomos para a 111, a galeria no Campo Grande… O Manuel de Brito cativou-nos, para já, porque havia espaço, dava-nos liberdade, e, durante as reuniões, oferecia-nos um vinho do Porto, um brandy… E lá reunimos várias vezes. Tivemos algumas ideias. Umas das coisas foi o painel. Mas havia às vezes divergências, de uns e outros, e as coisas deixavam de se fazer. Mas as que se fizeram foi a cobertura da estátua, o painel e uns cartazes. Uns cartazes foram feitos pelo Vespeira, outros pelo João Abel Manta. Nós não imprimíamos, não tínhamos condições para o fazer. Nós, os artistas do Movimento Democrático de Artistas Plásticos, fazíamos os desenhos e depois entregávamo-los aos militares, ao MFA, e eles pagavam a impressão. Os cartazes foram aparecendo – alguns por iniciativa dos próprios artistas, outras vezes sugeridos por amigos de artistas que nos motivavam a fazer os cartazes. A Vieira da Silva, por exemplo, foi uma das convidadas. E fez aquele cartaz que se tornou muito conhecido. 
 

Maio de 1974: “A arte fascista faz mal à vista”

Eu tinha sabido pelos jornais de uma notícia, uns dias antes, a dizer que os caminhos de ferro ofereciam o transporte das estátuas para um local onde as derretessem, para fazerem placas de “Viva o 25 de Abril”. Estávamos no início do maio. Perante estas notícias, fomos ao Palácio Foz. Fui eu, foi o Moniz Pereira, foi o Nikias, o Sá Nogueira, o Abel Manta e o Júlio Pomar. Chegámos lá e perguntámos: “Quem é que está a comandar isto?” Era um capitão que estava responsável pela parte cultural. E nós dissemos: “Senhor Militar…” – Julgo que seria o Capitão Nunes… – “Você não sabe quem nós somos?”, dissemos. “Nós somos muito ‘importantes’ na arte. Faça favor de tomar em conta aquilo que lhe vamos dizer. Vamos deixar este documento a dizer: ‘Façam o favor de não deixarem que se destrua estátua nenhuma.’ Porque a história repete-se, é sempre a mesma coisa. ‘Se não gostarem das estátuas, tapem-nas, levem-nas para outro sítio, mas não as derretam.’”  Eu era um homem novo…. Tinha 30 e tal anos. No nosso grupo eram mais velhos o Moniz Pereira, o João Abel Manta.

Quando umas semanas mais tarde entrámos no pátio do Palácio Foz, no dia 28 de maio, nós e outros, levámos um enorme pano preto. Os funcionários reagiram mal, mas não se aproximaram nem nos impediram de entrar. Estavam à janela, nas varandas. O Vespeira, que era muito temperamental e nervoso, fez uma coisa que me impressionou. Aproximou-se do busto do António Ferro, pegou num saco de plástico e enfiou-o pela cabeça do Ferro abaixo. O Sá Nogueira, que era muito alto, serviu-nos de escada. Nós pusemo-nos em cima dos ombros dele para colocar o pano e a corda à volta da estátua do Salazar.

Quer no 25 de Abril, quer no 1.º de Maio, estava muito calor. No 1.º de Maio foi só política. Nada de arte. Surpreendeu-nos a todos a marcha, a multidão a caminho do Estádio do Inatel pela Almirante Reis acima. Havia na rua pessoas a darem copos e canecas de água a quem ia na manifestação. Sabe porquê? Porque na cidade estava tudo completamente fechado. Não havia um café, uma tasca, um restaurante abertos. Eu na altura vivia entre Lisboa e o Porto. E quando estava em Lisboa durante a semana a dar aulas, costumava ficar no Hotel Americano, na Rua 1.º de Dezembro. Nesse dia nem as camas do hotel foram feitas pelas camareiras. Tudo parou... 

* A entrevista foi continuada a 24 março e a 21 de abril 2023.

Lima Carvalho - Joana Linda 2022
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